terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Livrou-se

Permaneci sentada na beira da calçada olhando os pingos cair nas poças de água compridas & chatas formando ondinas bonitas & mágicas. Ele estava em pé ao meu lado, sóbrio, cigarro aceso nos dedos amarelados pelos anos e boca seca de tanto tagarelar, impaciente falando sem parar da previsão do tempo, das últimas notícias, do salário que anda mal... Eu ouvia calada e gostava do jeito simplório que ele usava pra gesticular sem parar enquanto cuspia palavras e gotículas de saliva grossa que pareciam embalar a chuva com seu tom rouco-aveludado. Minha cabeça cheia de caraminholas & planos benditos para quem sabe uns dois séculos daqui... Eu acho que ele podia prever que tudo aquilo me satisfazia - ilhados num posto de gasolina de tons amarelo-queimado - se resolvesse sentir um pouco, além de despejar palavras bonitas & chatas para passar o tempo que eu nunca quis que passasse. A chuva acalmava & persistia gradativamente conforme eu queria, enquanto ele continuava a falar sem parar como um papagaio treinado sobre assim & assado... eu continuava a dar trela pro acaso.

Qualquer coisa que se sinta

Eu ainda podia ouvir
as castanholas & o som
caliente do violão

8 graus vazios ...
Da noite só restaram
as garrafas & a cera das velas .
A chama dançante da última delas
me observava & fingia num compasso absurdo .

Decidi dormir
.
Hoje?
Só vejo pessoas cinzas.
Transeuntes que trocam a alma
por carne
todos os dias.
Mulheres que só tem sobrenome.
Homens compostos apenas de cifrões.
Crianças estúpidas & adestradas
rebolando num solene vai-vem.
Adolescentes barulhentos
cheios de uma loucura sem sentido.
Somente rostos & pernas & mãos...
Todos iguais
Embriagados pela culpa coletiva
respeitando leis,
acatando gritos,
Seguindo exemplos.
Com suas línguas podres encharcadas de palavrões
Ditando regras,
Cuspindo ordens.
Pra um mundo que caminha
Sem saber
pr'onde vai.

Jornal das 7.

Está começando o Jornal da Noite primeira edição.
Agora fiquem com as manchetes do dia.
Ciência destrói a Descoberta.
Religião destrói a Espiritualidade.
Políticos destroem a Liberdade.
Advogados destroem a Legalidade.
Mídia destrói a Informação.
Médicos destroem a Cura.
Está tudo ao contrário no mundo em que vivemos?
Se você tiver sorte... boa noite!

Nós amamos a ciência #27

Distraídos viveremos - tributo a Leminski

Ônibus.


- Você parece triste.
- Sempre é triste...
- Você se arrepende de algo? Ou de alguém?
- Não, senhora.
- Ela realmente parece arrependida.
- Mas ela também está sorrindo.
- Sim, senhora. Um sorriso arrependido. Às vezes aparece durante a noite, quando a noite vai se deitar ela dá lugar à escuridão, quando as horas respiram mal. E quando a solidão, sozinha, se transforma em remorso.
- Você pode se arrepender ou sorrir. Não os dois ao mesmo tempo!
- Não, senhora. Os dois eventos, sorriso e arrependimento, coexistem. Então, o tempo aqui é vertical.
- Ai!
- O sentimento é irreversível, por assim dizer, a reversibilidade é aqui sentimentalizada. O sorriso se arrepende, e o arrependimento sorri.
- Posso?
- Controle de arrependimento.
- Acho que sim, senhora!

Era uma espera sem sentido. Uma espera sem sentido, e, portanto, ainda assim direcionada para a espera, o sonhador. Era um tipo de convite para ele para fazer uma última tentativa, um último esforço criativo para sair do sonho, do destino, da sorte, da forma, de si mesmo.

- Tenho visto a vida inteira, sem uma exceção sequer, homens com rostos duros, contorcidos, que demonstram tão terrível temperamento e rugem tão horrivelmente que metem medo em lobos.
Frequentemente me pergunto o que é mais fácil de penetrar, as profundezas do oceano, ou as profundezas do coração humano!
- Saudações a ti, velho oceano!
- Saudações a ti, velho oceano! Diga-me se o Príncipe das Trevas luta dentro de você! Diga-me!
- Você que deve me dizer!
- Eu ficaria encantado em saber que o Inferno está tão perto do homem!
- Saudações, velho oceano!
- Ainda não!
- Então, uma última vez, eu saúdo a ti, velho oceano. Tuas ondas cristalinas superam a beleza da noite. Responda, oceano! Se és meu irmão, rola tuas temerosas ondas, odiento oceano, diante do qual eu falho.
- Saudações, velho oceano!
- Agora!
- Saudações, velho oceano!

"Falo mais baixo...
    Cada ano falo mais baixo...
    Pensando melhor,
    não, não está bom...
    Quando as pessoas parecem
    que me conheceram,
    É como se..."

Observe esse silêncio, sua boca também ansiava abrir num último grito mudo de horror. No entanto, enquanto ele via o silêncio, quase antes de ele ver, ele não mais viu. Pois a noite reúne suas forças uma última vez para vencer a luz. Mas a luz vai esfaquear a noite nas costas. E agora, muito calmamente no começo, como se para não alarmá-lo, o sussurro que o Homem ouvira não tanto tempo atrás, há tanto tempo, muito antes de ele existir, o sussurro recomeçou.

- Então o quê?
- Não sei... Não deveria ter começado... O sentimento. Sempre senti que havia um assassino dentro de mim, antes do nascimento! Mesmo, no chão ligado a você pelo amor, pelo amor...
- Claro, ele deve ser trazido de volta à vida!
- É isso que torna o trabalho tão difícil. Mas faz parte da aflição. Mas eu preciso continuar. Vou continuar...
- Pare de dizer "eu" o tempo inteiro.
- É assim que eu falo, é como eu falo comigo mesmo. Naquela tarde... Aqui, na terra... Só há eu, e uma voz que não pode ser ouvida, porque não se dirige a lugar algum. Então, à noite, alguém sussurra no meu quarto. É o vento ou são meus ancestrais?
- Ocidentais, entre outros, acreditam que há um quarto, e outro quarto: o Além. A Morte é a porta que leva de um quarto ao outro.
- Mas por que tornar a porta uma tragédia? O Homem nasce para a morte.
- Ele pode causá-la se quiser.
- Mas em nenhuma civilização, nenhuma, o homem optou por sua própria morte. No entanto, escolher não ter renascido é o bastante.
- Algumas vezes você se pergunta se está no planeta certo!

    "Quando separamos
    essa terra do sol?
    Quem nos deu a esponja
    para apagar o horizonte?
    Não estamos caindo para sempre?
    Não consegue ver a noite chegando...
    nada a não ser a noite
?“

O guardião

Naquele quase dia, eu lembro que eu corria. Meus pés pisavam nas sombras da noite e, logo que subiam em um novo passo, o solo atrás se iluminava pelo sol nascente. Eu ri comigo mesmo ao pensar que eu era o guardião do dia, como diziam as lendas.
Eu me deixei rir, como também deixei as minhas lágrimas descerem e repousarem tranqüilas naquela linda e doce planície aquecida por aquele cobertor de flores, que sempre foi o meu porto seguro por toda a minha infância. E naquele momento, à flor da idade, aquelas flores continuavam sendo.
Quando eu vi o moinho de vento à distância, meu coração se acelerou, assim como os meus passos, o belo Sol agora um pouco mais distante. A pequena garrafa que eu levava comigo parecia ficar mais pesada a cada vez que a imagem da garota surgia.
A garrafa que continha o líquido que salvaria a vida da pessoa mais importante da minha vida. Eu não era o guardião do dia, eu era o guardião da vida. De uma vida, da única que me importava.
Quando cheguei na única rua de areia e barro da minha vila, senti como se a minha criança corria ao meu lado. O meu eu infantil, brincando de pega-pega ou esconde-esconde; sem nunca entender que acompanhava o seu eu futuro na tarefa mais importante da vida.
Abri a grande porta da pousada e parei por um minutinho, lembrando de tomar ar. Atrás de mim a minha criança e o Sol continuavam o seu rumo.
Vi as faces conhecidas e preocupadas da família da garota. Vi Gabriel, o espírito aventureiro que sempre me desafiou em toda oportunidade; me olhava suplicante. Vi Ramis, a alma calma e sábia apenas me fitava, o peso da sua confiança pesava em meus ombros e me dava forças ao mesmo tempo.
Nenhuma palavra foi dita entre mim e os dois irmãos da garota. Deixei as lágrimas e a garrafa cheia falarem, ela agora estava em minhas mãos apertadas, o vidro refletia o meu sorriso. Subi as escadas de madeira, virei no corredor onde as tochas apagadas e os retratos da região decoravam o local.
Na porta, parados no corredor, espiando tímidos por uma fresta, os pais dela. Eles me viram, olharam a garrafa e seus rostos trocaram da aflição para a felicidade. A mãe soltou um suspiro de alívio e o abafou com as mãos trêmulas, o pai acenou com o seu sorriso raro e sincero. Os dois, que eu considerava meus próprios pais, me deram passagem.
Eu entrei no quarto que servira até aquele momento como um leito de morte para Manuella. Não mais.
Quando seus olhos semicerrados, valentes, corajosos, dourados e fracos se encontraram com os meus; senti uma enorme sensação de paz. Como se um espírito agourento fosse lavado de mim, naquele momento, eu era a pessoa mais feliz e tranqüila da face da terra.
Ela bebeu do líquido milagroso, o gosto não parecia bom. Mas existiria algum remédio gostoso? E ela não reclamou, a doce Manuella não reclamou.
Ela terminou de beber a última gota e me devolveu a garrafa. Eu sorri, ela sorriu de volta.
Ainda estava fraca, mas logo se sentiria melhor. É claro que ficaria! Eu escutei a única palavra que ela proferira em seu suspiro.
“Obrigada.”
Ela fechou os olhos cansados, virou o rosto para a janela e deixou sua alma sair de seu corpo, em direção ao firmamento azul.
Eu continuei ao seu lado, com o meu sorriso alheio. Esperando ver seus olhos mais uma vez.
Eu continuo esperando e eles ainda não se abriram. Mas eu não me preocupo! O líquido milagroso vai dar o seu jeito a qualquer instante. Vocês vão ver!

MÁQUINA FERMAT ou Velho Oeste in process

sou um rato catando bitucas nos cantos do quarto

aqui
onde os assassinatos são ridiculamente forjados
onde legisladores são pendurados em forcas
onde tudo cheira a carvão & cinzas de igrejas incendiadas
onde os jovens exibem seu topetes estrategicamente despenteados
onde meninas de 12 anos arrancam crianças de suas entranhas
onde a poesia não tem lugar nos muros da cidade
onde a poesia não tem lugar nos corações dos transeuntes

sou um rato catando
bitucas nos cantos do quarto

dois canos de chaminés enferrujados
me trazem notícias do mundo lá fora

fósforos
cartas
& teoremas por solucionar...
Lá em casa. Isso, lá em casa eu posso tomar um café com bolo. Tenho fome. Acho que devo ter andado muito até chegar aqui. Não sei bem há quanto tempo estou sentada neste banco, o tempo já não faz sentido. Poucas coisas fazem.  Muitas ausências. Todos já parecem ter se ido e eu fiquei aqui. Permaneço. Amanheço, Entardeço, Anoiteço, Adormeço. Sempre é um começo. Minhas lembranças vem e vão, inapreensíveis. Mal chegam não conseguem nem ao menos configurar uma cena, logo se apagam. Muitas vezes um branco total toma o lugar em minha mente. Cansada, exausta, mas ainda febril. Algo me move, sempre pra frente. Pego minha sombrinha e saio. Ando muito. Nunca sei pra onde. O destino deixou de fazer sentido há tempos. Para que fixar um local de chegada se me perco em cada parte do caminho? Como hoje. Não sei a que horas sai de casa. Sei que sai porque estou aqui. Sei que devo ter andado bastante porque minhas pernas doem e sinto fome. Sei onde estou e sei voltar. Ao menos neste momento eu sei. Mas tenho medo de me levantar e prosseguir. Agora sei como voltar pra casa, reconheço esta praça. Tantas e tantas vezes estive aqui em momentos diferentes da minha vida. Ana pequena, começando a dar os primeiros passos. Eu e Otávio, jovens, namorando, talvez até mesmo aqui, neste mesmo banco. Será que dá tempo de chegar em casa antes que a linha do percurso se apague de vez? Vale a pena levantar? E se neste momento em que eu me levantar tudo se pagar novamente? Será que devo gritar? Chamar alguém para me ajudar enquanto ainda lembro quem sou e o endereço de casa? Vão pensar que sou louca, uma velha demente. Mas é isso mesmo que sou. Uma velha demente. Sempre soube que a loucura um dia me levaria pra longe. Este perto longe em que me encontro agora. Se eu pudesse ao menos ter forças para correr, correria pra casa, rápido. Lembro de correr em varias ocasiões em que as coisas não corriam muito bem pra mim. Correr era um modo de escapar. Muitas vezes treinei aqui neste mesmo parque. Corri muito. Muitas maratonas, competições, muitas medalhas. Todas lá na gaveta da sala, ainda lá. E eu aqui. Deve faltar pouco para eu também se engavetada. Arquivada. Uma prateleira com uma etiqueta com meu nome nela. Por enquanto estou aqui, quase inerte, com um medo gélido que me paralisa. E se eu me levantar e tudo sumir? Sei que some, ao menos isso eu sei, agora, neste momento em que me recobro. Tento nestes momentos fazer toda a força possível para estar totalmente presente. Como valorizo estes agoras. Agoras são o que eu tenho, meu bem mais precioso. Quando não estou em mim, não ha nada. Nestes agoras me sinto inteira, com tudo que sou e fui convivendo em mim. Mesmo leve como estou sinto o peso. A vida pesa. Mas agora sei como é bom sentir esse peso, esse algo em mim. Esse algo eu. Fora destes momentos não ha nada. O médico me diagnosticou. Pensei que era exagero dele. Imagina, eu, perder minhas faculdades... Minha capacidade de lembrar onde moro, quem sou, meu passado, minhas coisas, pessoas. Mas foi o que aconteceu. É o que acontece. Tudo parece correr de mim. Vertiginosamente se apagam. Isso me parecia impossível. Até que algo nesta idéia me atraía. Imaginei a leveza que me tornaria. Agora que já não podia mais correr, este estado de amnésia temporária seria o mesmo que uma corrida febril, a mesma sensação de liberdade e êxtase. Só que eu simplesmente não tenho nenhum tipo de lembrança de como isso ocorre, quando ocorre, o que acontece, qual a sensação, nada. O que sinto, nestes momentos em que me recobro é o peso. E o medo. Mas de tanto isso acontecer até o medo eu já estou perdendo. Parece que sempre acabo num lugar conhecido, por mais que me afaste de mim.  Talvez seja isso a morte. É este deve ser um tipo de treino para o embate final. Acho que estou ficando boa pelo menos nisso. Quando o medo se for de vez, virá o total desapego e talvez seja hora de não voltar mais, nada de me recobrar. Na.
 

Fábula

Porque vieste do mar e nasceste da ressaca das ondas que quebram tua mãe é a lua.
Tua aparição mística na demolição das vagas para o espanto de um pescador que ali passava.
Mas esse pescador, que te conheceu perdida, embalou o teu corpo como se fosse um remo - e assim ele se fez teu pai.
E tua mãe gigante sempre te vigiava, e quando podia construía pontes impossíveis que a levavam até a areia da praia onde moravas.
E da tua casa podia-se ouvir ainda o martírio das ondas e a sistemática ressurreição de outras como tu.
A maresia enfeitava o ferro com a ferrugem.
E enquanto o sal te acrescentava o corpo que um dia terias e te esculpia como uma estátua, teu pai namorava a tua mãe toda noite perto da janela.
Mas foste filha
ungênita desta paixão imensa.
Porque teu sono era tão frágil quanto o silêncio.
E tu cresceste, e choravas cada vez menos e cada pranto era cada vez maior, cada vez mais pesado.
E quando choravas teus olhos sonhavam mirando em mim.
E quando fugias, fugias em minha direção.
Teus pais perguntavam - "Por que lá?"
E dizias - "Porque a viagem é longa."
Aprendeste a remar com eles, mas agora, remavas para mim.
Até mesmo Deus, com ciúmes, certa vez quando estavas sozinha te disse em oração:
- "O horizonte é uma imensa boca que quer deglutir a tua alma.
O mar é a água na boca.
O sol é o brilho no olhar.
Tua mãe ficou nova e fugiu,
E teu pai, atrás dela, foi passear numa segunda lua de mel."
Meus lábios arquearam para baixo, porque eu soube que nunca mais irias me abraçar.
Só então eu percebi que tinha engolido o mundo,
E que estavas já, dentro de mim.

Tempestade indefinida (o seu fim é para o nunca)

As horas já desconhecidas de seus pais agora dão ordens ao pensamento aprisionado no tempo. Há uivos. Ouve-se um ruído surdo como uma gota de chuva que cai discreta ao chão, embora louca de dor. O mesmo choque entre o cimento quente e sujo e a gota pura e celeste é o que acontece nos ouvidos daqueles presos; e na imagem que eles representam e que engana a todos, inclusive a eles próprios. Quando a chuva virou cimento e chove cinza, ninguém mais soube distinguir a dor, a vida e a morte e foi aí que as horas se apoderaram. Um dia logo chega em que uma descarga furiosa faz destroçarem-se pedaços de gelo no cárcere mal cheiroso e sombrio do coração daqueles humanos, e das horas, mais humanas que eles. Neste dia foi que todo o mundo achou que uma chuva não poderia destruir nada. Tinham razão, porque os corações continuam pulsando inundados no mesmo ritmo febril do relógio.

Coreografia inacabada

Em um respirar, poucos sons são mesmo audíveis. Algumas frequências já se transformaram em vapor, aquecendo meus órgãos. Muito menos calma do que aparenta todo o cenário que compõe a imagem de mim, estou suspensa. Sem saber quando consegui segurar com as mãos assim meus próprios olhos sem chamar atenção. Eu tremia, e parecia a minha pele manifestando o desejo de fugir. Há muito achava que eram os habituais terremotos. Mas a terra nada tinha a ver com isso. Movi-me de todas as formas na tentativa de escapar, no fundo fazendo a força impossível de tentar manter tudo no eixo de mim mesma, inalterado. No fim, que é começo, meu eu dança por si mesmo livremente, perdendo seu eixo enquanto o mantém seguro, montando sua própria arena em que é o espetáculo e a plateia. Atração principal: correndo em círculos. Não há espaço visível, só com os olhos muito fechados encontro. O chão não é o mesmo em cada violência que recebe, e que devolve, depois, na mesma lógica, mas no reverso. Já são minhas mãos que me conduzem. Sem o oxigênio necessário, tive que me render. Havia feito o que era preciso até quando o que era preciso ser feito se libertou de mim seguindo seu caminho (antes que eu pudesse reconhecê-lo em mim).

E por isso não há silêncio

Preciso condenar o acontecido
à petrificação de um amuleto
à metrificação deste soneto
para que seja dado a um ouvido

e não mortificado no olvido
como a vida de um velho esqueleto.
Por isso a criação deste panfleto
que busca registrar cada gemido,

ruído emitido pela míope boca,
na frivolidade da forma oca
que não comporta toda a epopéia

do fato real, no entanto tentamos
buscar definitivos e falhamos:
a expressão sempre frustra a idéia.

Eu e tu

Na beira da cama dorme ela nua
Saborosa fruta doce humana
Salgada na carne que a toca
Doce só os lábios
Fresca e amortecida
Momentaneamente morta para ti e para mim
Que a imagina deliciosamente branca como a cortina do quarto
Como as paredes
Doce menina santa
Salgada mulher diabólica
Carnal
Vem e me beija, transforma-me
Em teu homem, teu deus, teu macho

És insana, mulher
Sei bem
p’onde me levas
Misturas em mim teu salgado corpo e teus doces lábios
Que sugo, que devoro
Depravada
Dormes agora e me deixas aqui te amando um pouco
No mundo que nunca acontece
Mergulhas no teu mais profundo abismo
Linda insana doce figura de carne salgada
Espírito que vai longe do meu leito
Figura oca
Semi-morta, apagada

Eu ouso não fazer barulho
Eu quero continuar achando que te matei de prazer
Tu dormes momentaneamente extasiada de mim
Eu circulo em tuas veias enquanto morres e morres
Tu circulas nas minhas como o primeiro sopro de vida
Meu coração palpita com cada partícula de você que o atravessa

Epitáfio


Sabei que o poeta agora já vencido
Da final inscrição vulvas dilata
Pois toda dedicada estrofe à farta
Retrata a
vera-efígie da libido.

Sabei que quem aqui
odiza aos pós
Sob a laje de prímulas e cera
Outrora à vária gente embevecera
E fora o mais bonito sobre vós.

Sabei que mesmo morto, errante turba
Ainda a muitos leitos o chamado
Receberá das moças ao ser guiado
Pela tímida mão que lhes masturba.

Dica DiVina


Ocupe sua mente, sem deixar de esvaziá-la de vez
enquando. Se relacione com o ambiente respeitando-o, harmonize-se. O mundo é o nosso maior laboratório de vivências, e viver é o melhor passatempo que já se descobriu.
Comunique-se.
Converse com as pessoas, expresse suas opiniões, mas aprenda a não ter medo de mudá-las. Não se apegue a palavras, pois toda verdade é transitória, principalmente no universo do discurso.
Questione sempre.
Não se deixe enganar com esquerdas e direitas, pois você está sempre no centro do problema político.  Não vote em gente escrota.
Não deixe um sistema que não te satisfaz plenamente sugar seu sangue, suor e tempo.
Não seja escravo do relógio, deixe hora em sua agenda pra se encontrar consigo.
Sabote os modos de vida que sabotam nossa humanidade.
Pirateie, use software livre, use lâmpadas econômicas, use filtro solar, use camisinha, mas não use tudo que te peçam pra usar.
Não acredite em propaganda, não acredite papai Noel, não acredite em sonhos que possam ser comprados.
Tenha fé, mas não acredite em igrejas, nenhuma delas pode te intermediar o contato com o divino, este se faz dentro de você.
Sorria, abrace, beije, transe, goze, não case virgem.
Recicle o seu lixo, plante o seu, vá de bike.
Se for beber não dirija, me convide!

CANÇÃO DO EMÍLIO


Minha terra tem bocetas
Com gosto de butiá,
As mulheres cá me
fodem
Não me
fodem como lá.

Nosso réu tem mais estrelas,
Nossas várzeas mais tenores;
Nossas pombas têm mais vida,
Nossa vida mais sabores.

Em trepar contigo à noite,
“Mais prazer encontro eu lá”.
Minha terra tem palmito
E também tem vatapá.

Minha terra tem pecados
E a Thaís não encontro cá;
Em fumar capim maluco
“Mais prazer encontro eu lá”.
Minha terra tem Palmeiras
Onde sonha a série “A”.

Não permita Deus que eu corra
Sem que eu fuja para lá,
Sem que ache os senadores
Que não encontro eu cá.
Sem
qu’inda receba palmas
Do amigo marajá.


Andarilha



Perdi minha identidade,
Não sirvo à pátria,
Acendo uma vela para Deus, e um cigarro para o Diabo.

Vivo com as malas nas mãos,
Vejo anarquistas em todas as partes.
Viro a esquina rumando entre as cidades.

Não volto mais,
Sou filha do mundo,
Não tenho mais dó nem piedade.

No meio das latas e da fumaça,
No meio do purgatório diante do inferno....
Não temo mais o meu desejo.

Sem olhar para trás,
Eu sigo feliz
Até o penhasco.

Enquanto bebo minha cerveja...



Tenho um coração esfacelado por dois furos de loucura. Um risco de faca no peito da alma. Caminho na linha tênue que separa a razão dessa loucura. Às vezes eu gosto da loucura. Às vezes, preciso da loucura. Minha razão é controvérsia, claro que é! Minha loucura é imensa, claro que é! O risco, às vezes, pode levar ao sucesso, como ‘o que não me mata me fortalece!’ - & assim falou Nietzsche - mais ou menos isso. E assim os dias passam, entre um furo de bala ou um risco de faca, entre uma rasura literária e outra, entre um poema impossível e outro, entre uma paixão corrosiva e outra nem tanto, entre uma razão fragmentada e uma loucura inteira. Só não deixo de cantar. Isso não. Já é pedir demais pra mim. Faço quase tudo ou de tudo um pouco, só não sei fazer ‘verdades’, mas me arrisco nos tiros que dou, entre um alvo fictício e outro, um trago e outro mais - mas são os alvos reais que gemem e gritam em silêncio por detrás de seus altos e fragilizados muros de proteção. Um pouco de luxúria e perdição me convém. Um pouco de mistério e fuga. Um pouco de realidade nua e crua, como aquela carne com a qual eu me deitei ontem e tive alguns momentos de êxtase profundo. Depois, uma cerveja intercalada com algumas doses de rum, meio charuto e algum poema do velho
Buk pra não se esquecer de quem eu sou e pra que é que vim. Sempre fui prematuro, em quase tudo. E hoje sou também na minha velhice. Um homem com menos de meia idade em corpo, feitura e disposição, e com mais de 60 em algumas idéias, em algumas práticas, em alguns defeitos. Minha criancice atingiu níveis exemplares em brincadeiras selvagens. Minhas palavras desmedidas. Minha dor de barriga. Meus olhos escuros. Minha boca sedenta por beijos de verão. Eu agonizo vendo cenas de horror na televisão ou ouvindo cantar pela rádio aquele cantor ou dupla sertaneja que tanto odeio. Esse mundo não dignifica nenhuma humanidade, apenas a torna mais besta e idólatra. Eu, da raça dos destruidores, dos que vingam o passado em versos mundanos, absurdos de toda a ordem ou terrorismos poéticos, eu que desconstruo mais do que construo, dou minha contribuição pro mundo hoje. Me sento em um banco de praça pra compor esse texto que vai dar em lugar nenhum. Talvez alguém entenda (ou ache que entenda), não sei. E não saber é tão vago que eu fecho as cortinas do meu quarto e desapareço. Deixo a noite cair. Me misturo nela. Querida! Amanhã talvez eu volte...
 

  

Tentativa de...



Preciso dizer que sou mulher e quero que vocês acreditem em mim. Sou mulher mesmo com os lábios manchados e o rosto sujo de rímel escorrendo nas dolorosas lágrimas que derramo todas as noites antes de dormir.  Um tempo se passou desde a primeira vez que meu leito se tornou doloroso e minha cama desconfortável. Odeio virar-me para todos os lados para só depois poder desaguar na escuridão, experimentar todas as posições e nenhuma ser confortável o bastante para fazer eu me sentir confortável. Estranhamente preciso dormir e durmo porque meu corpo quer repousar. Parece que caio da cama num abismo fundo
Caio
Caio, sim
E acordo depois da grande queda que tive. De onde vim? Não sei. O desconforto retorna, justamente da insatisfação, da má vontade e a desrealização de todos os sonhos que tive. Faz tanto tempo e meu telefone não toca. Com certeza não toca porque sou arrogante e penso que ninguém quer me ver. Sou capaz de virar um vegetal regado por toda essa ingratidão. Entenda: nunca me senti importante, sinto-me inferior. De mim não sairá conversas produtivas nem obras de arte. Decidi mandar isso a uma revista, preciso exacerbadamente ser reconhecida antes do desespero e da solidão me enlouquecerem. Preciso me reconciliar com milhares de pessoas, porém minha coragem é oca. O anonimato é mais fácil, crio o meu eu e dele me alimento. Ah, outra vida, quero tanto outra vida. Preciso ser homem para descontar dentro de mim a pouca mulher que sou.