terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O guardião

Naquele quase dia, eu lembro que eu corria. Meus pés pisavam nas sombras da noite e, logo que subiam em um novo passo, o solo atrás se iluminava pelo sol nascente. Eu ri comigo mesmo ao pensar que eu era o guardião do dia, como diziam as lendas.
Eu me deixei rir, como também deixei as minhas lágrimas descerem e repousarem tranqüilas naquela linda e doce planície aquecida por aquele cobertor de flores, que sempre foi o meu porto seguro por toda a minha infância. E naquele momento, à flor da idade, aquelas flores continuavam sendo.
Quando eu vi o moinho de vento à distância, meu coração se acelerou, assim como os meus passos, o belo Sol agora um pouco mais distante. A pequena garrafa que eu levava comigo parecia ficar mais pesada a cada vez que a imagem da garota surgia.
A garrafa que continha o líquido que salvaria a vida da pessoa mais importante da minha vida. Eu não era o guardião do dia, eu era o guardião da vida. De uma vida, da única que me importava.
Quando cheguei na única rua de areia e barro da minha vila, senti como se a minha criança corria ao meu lado. O meu eu infantil, brincando de pega-pega ou esconde-esconde; sem nunca entender que acompanhava o seu eu futuro na tarefa mais importante da vida.
Abri a grande porta da pousada e parei por um minutinho, lembrando de tomar ar. Atrás de mim a minha criança e o Sol continuavam o seu rumo.
Vi as faces conhecidas e preocupadas da família da garota. Vi Gabriel, o espírito aventureiro que sempre me desafiou em toda oportunidade; me olhava suplicante. Vi Ramis, a alma calma e sábia apenas me fitava, o peso da sua confiança pesava em meus ombros e me dava forças ao mesmo tempo.
Nenhuma palavra foi dita entre mim e os dois irmãos da garota. Deixei as lágrimas e a garrafa cheia falarem, ela agora estava em minhas mãos apertadas, o vidro refletia o meu sorriso. Subi as escadas de madeira, virei no corredor onde as tochas apagadas e os retratos da região decoravam o local.
Na porta, parados no corredor, espiando tímidos por uma fresta, os pais dela. Eles me viram, olharam a garrafa e seus rostos trocaram da aflição para a felicidade. A mãe soltou um suspiro de alívio e o abafou com as mãos trêmulas, o pai acenou com o seu sorriso raro e sincero. Os dois, que eu considerava meus próprios pais, me deram passagem.
Eu entrei no quarto que servira até aquele momento como um leito de morte para Manuella. Não mais.
Quando seus olhos semicerrados, valentes, corajosos, dourados e fracos se encontraram com os meus; senti uma enorme sensação de paz. Como se um espírito agourento fosse lavado de mim, naquele momento, eu era a pessoa mais feliz e tranqüila da face da terra.
Ela bebeu do líquido milagroso, o gosto não parecia bom. Mas existiria algum remédio gostoso? E ela não reclamou, a doce Manuella não reclamou.
Ela terminou de beber a última gota e me devolveu a garrafa. Eu sorri, ela sorriu de volta.
Ainda estava fraca, mas logo se sentiria melhor. É claro que ficaria! Eu escutei a única palavra que ela proferira em seu suspiro.
“Obrigada.”
Ela fechou os olhos cansados, virou o rosto para a janela e deixou sua alma sair de seu corpo, em direção ao firmamento azul.
Eu continuei ao seu lado, com o meu sorriso alheio. Esperando ver seus olhos mais uma vez.
Eu continuo esperando e eles ainda não se abriram. Mas eu não me preocupo! O líquido milagroso vai dar o seu jeito a qualquer instante. Vocês vão ver!

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