terça-feira, 10 de abril de 2012

Biografia definitiva


"Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus." João 1,12

Há um milênio atrás a lua já tentava concorrer com a luz e a minha pele fritava diante desta batalha
enquanto eu recuava em calabouços e me alimentava de alguns vegetais que monstros e demônios colocavam em meu prato.
Digeria tudo isso diante de uma platéia de dois olhos que se convergiam em um olhar.
E multidões de outros homens aniquilavam-me em seus pensamentos.
E tudo neste momento era uma inquisição. Os inquisidores e a fogueira flutuando.
Como num ritual monstruoso que se erguia sobre duas pernas humanas ainda não mutiladas.
E um lustre que invejava o poder do sol perseverava a iluminar o topo das minhas cabeças.
Depois disso veio a noite, a tenebrosa noite em que as feras dormiam e sonhavam com o meu sufrágio.
E eu era o pai de todas as crianças famintas que choravam bêbadas pela rua.
Já que meus ouvidos eram os únicos donos de suas vozes e meus olhos distantes, do alto da torre, eram a única segurança que eles tinham quando tropeçavam nos ratos e baratas que, por sua vez, tinham o que comer.
De lá também eu assaltava a imagem dos peregrinos perdidos e condenava cada um deles à minha própria solidão.
Já que eles não amaram um amor tão imenso e não alimentaram as nuvens negras da noite com as lágrimas pelos pecados que cometeram.
E todo pecado era uma vontade de ser feliz...
Eu morava lá, onde o vento consagrava-se demolidor; naquele castelo em ruínas, abandonado pelo meu corpo e por minha saúde, cacoete da minha alma perseverante...
Porque sabia que, assim como o mineral para tornar-se planta teve que ser absorvido nesta, e esta para tornar-se animal teve que ser integrada neste, e este para tornar se homem teve que ser digerido por este
conhecia também que o homem para tornar-se Deus precisou renunciar-se a si, inimizar-se de sua filáucia.
E eu queria integrar-me n'Ele,
queria voltar para casa.
E assim como o Verbo se fez carne, a carne se fez Verbo quando a mais bela e mais humilde das três Marias desceu e me concedeu seu lugar.
A chuva que ali caia apagou seu fogo, mas eu voltei para a casa de meu Pai e abracei sua escuridão com meus braços invisíveis.
E meu olhar brilhava diante do Seu poder.
Durante muitos séculos, crianças famintas rezaram por mim e os peregrinos se guiaram por minha presença.
Desde então tudo o que existe vem sendo possível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário