sábado, 3 de dezembro de 2011

A única coisa que eu ouvia era a chuva. Doce e tranqüila, com uma mistura de melancolia e solidão. Passei minha vida inteira com aquela sensação, mas nunca a compreendia, nunca entendia por que a chuva me causava tanto paradoxo. E agora que a verdade parecia estar ao alcance, eu a rejeitava. Eu a temia.
Deixei aquele som me envolver enquanto passava os dedos na face fria do retrato. Os cabelos. Os olhos. Os lábios. Aquele rosto imortalizado naquele sentimento de felicidade só contrastava ainda mais os meus arredores sombrios.
Escuridão, a chuva e a solidão. Deixei o retrato para trás e olhei para o céu nublado pelo vidro da janela, eu sabia que havia um tom de azul nas lâmpadas lá fora que iluminavam o meu apartamento negro, mas eu não via apenas aquele azul, eu sentia aquele azul me cobrindo.
Talvez a grande verdade fosse essa. Azul. A cor que nos uniu, a cor que nos separou e que agora caçoava de mim estando presente na minha amarga solidão. Era verdade (só poderia ser, estava tão certo disso quanto o azul que me rodeava). Era verdade, mas a ignorei, era mais fácil assim.
Era a única maneira de me manter são naquele momento.
Me concentrei nas gotas que escorriam pelo vidro desenhando lindas formas simétricas, não era surpresa que aquilo me fazia lembrar da moldura que por sua vez me lembrava dos tempos felizes, dos tempos passados.
Fechei os olhos. Era bom. O passado era uma armadilha que só deixava o azul mais forte. A chuva me reconfortou de uma forma intensa. Abri um sorriso tímido, hesitante, mas verdadeiro – meu rosto estava desacostumado com aquela expressão. Queria sentir na pele as gotas frias, queria sentir o vento batendo em meu peito e rosto.
Deslizei a porta de vidro para o lado e dei dois passos a frente, fui recompensado pelo vento frio e aconchegante, mas ainda não era o bastante. Cada passo dado a sensação do azul se enfraquecia. Era bom. Mas ainda não o suficiente.
Agora estava à beira da sacada e as gotas finalmente tocavam no tecido da minha camisa e na pele de minhas mãos – o azul já não existia, apesar de eu saber que as luzes ainda refletiam aquela cor em mim. Era bom, mas ainda faltava algo.
Desabotoei minha camisa e a joguei para trás. Melhorava a cada instante, e eu ainda precisava de mais, precisava sentir a chuva completamente.
Devo abrir espaço, neste momento, para pedir perdão à pessoa retratada naquela foto deixada sozinha no azul, também devo pedir perdão a todos que significaram algo para mim, que tiveram o meu estranho e sincero amor. Perdão. Pois eu fiz uma bobagem, me acompanhem por mais um pouco e entenderão:
O teto do andar de cima impedia que a chuva pudesse vir até mim, por isso subi no pequeno parapeito da sacada. Usava a mão esquerda para me segurar na parede e a direita segurava os pingos que caíam. Era bom.
Mas não o suficiente.
Eu sabia que conseguiria sentir a chuva na pele nua de meu corpo se eu conseguisse chegar mais alguns centímetros mais perto. Na hora eu não percebi, mas era a mesma certeza de antes, a certeza do azul.
Quando as primeiras gotas finalmente tocaram minha pele, me deixei levar por aquela sensação incrível e me desliguei do mundo. E durante esses segundos cruciais, algo aconteceu. Me senti impelido – jogado – para frente como se alguém tivesse me empurrado (azul). Voltei à realidade quando me deparei com a calçada se aproximando cada vez mais rapidamente de mim.
Mesmo caindo, a chuva era mais rápida e eu pude sentir as costas e a nuca serem acariciadas, pelo menos aquela doce sensação não me deixara. Era bom.
O sorriso não deixou meu rosto naquele momento, nem quando eu percebi que a calçada também era iluminada por aquela luz azul que vinha de todos e de nenhum lugar.
Afinal. Era bom. Mesmo quando o azul me abraçou novamente. Mesmo quando meu nariz fez o primeiro toque e se quebrou e dobrou para o lado ao peso do meu crânio, mesmo quando todo o choque do impacto fez meu coração parar. Era bom. E continuou sendo.
E continua sendo.

Rene Amaral Rebelo

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